quarta-feira, janeiro 31, 2007

Cena inusitada (ou A democracia deles)

Imagine o seguinte episódio: após ter sido eleito pela maioria da população, o presidente dos Estados Unidos é vítima de um golpe de Estado orquestrado pelos grandes empresários e executivos da mídia e de outros setores econômicos, em acerto com uma parte do Pentágono.

Pense em figuras como Ted Turner (ex-dono da CNN/TNT), Gerald Levin (ex-CEO da AOL), Rupert Murdoch (magnata da News Corp.) e mais uma penca de "big shots" da mídia e da economia estadunidense em geral, reunidos na sede da NBC (maior rede de TV daquele país) e planejando a deposição do chefe da nação - enquanto degustam seus uísques 12 ou 15 anos - legitimado nas urnas pelos eleitores do país.

Pense na cena surreal em que TODAS as emissoras de TV do país suspendem a programação e passam a exibir desenhos animados durante o dia inteiro. Some a isto o detalhe de que milhões de pessoas estão nas ruas dispostas a tudo para garantir o cumprimento da Constituição e o respeito às regras da democracia política. O presidente, para evitar o derramamento de sangue, prefere recuar e aceitar o confinamento ilegal e ilegítimo, que mais tarde se revelará temporário e breve.

Findo o malogrado golpe, imposto mais pela força simbólica da mídia do que pela "razão das armas" dos militares, restaurada a normalidade e reconduzido o presidente ao seu posto, abre-se inquérito para se apurar as (ir)responsabilidades dos personagens envolvidos na trama.

A esta altura, Ted Turner - que já havia sido empossado como Presidente da República, posado com a faixa presidencial para as lentes e recebido os cumprimentos do embaixador do país mais poderoso do mundo - já estava exilado em outro país, temente à prisão certa por comandar uma conspiração contra o chefe da nação.

Cinco anos depois, a NBC, que serviu de quartel-general para o esquema dos golpistas, tem a sua concessão vencida e o governo declara que a mesma não será renovada, mas sim passada a outras mãos, em função da participação da empresa na frustrada e fracassada tentativa de usurpação do poder do povo.

O que há de mais absurdo absurdo nisso tudo? O fato de que a história acima não tem nada de ficção. Troque o país e os personagens (Ted Turner por Pedro Carmona, Rupert Murdoch por Gustavo Cisneros etc.) e tenha certeza: nada do que foi sinteticamente descrito é irreal. Tudo aconteceu. Na Venezuela, em 2002.

Agora, quando Hugo Chavez anuncia que a licença da RCTV - a emissora de TV privada que serviu de base aos golpistas - não será renovada, eis que toda a mídia adestrada internacional, incluindo a brasileira, além de algumas organizações e personalidades supostamente progressistas, acusam o presidente da Venezuela de censor e de violador da liberdade de expressão. Em outras palavras, estas vestais da democracia estão afirmando que os crimes cometidos pelos (tu)barões da mídia, envolvendo a estrutura física e operacional de suas empresas, não é nada demais e não justifica a não renovação ou a cassação (imagine se isso tivesse acontecido).

É o velho discurso da liberdade de expressão sem qualquer responsabilidade. Vale tudo, inclusive planejar e executar um golpe de Estado. Ou apoiar entusiasticamente, como fizeram, no Brasil, em 1964, Folha de SP, O Estado de SP, Jornal do Brasil, O Globo e praticamente a totalidade dos grandes veículos na época. E, por mais que todos estes veículos, hoje, escondam aquela postura totalitária, a memória coletiva não se apaga tão facilmente.

É por isso que, apesar de tudo, há algo de minimamente positivo na existência da extrema direita. Enquanto ela existir será possível saber em que pólo devemos nos situar.

Para quem não sabe ou não lembra o que aconteceu em abril de 2002 na Venezuela, vale ler o artigo "A Venezuela é aqui", de José Arbex Jr., e a reportagem "Venezuela: a orquestração do golpe midiático", de Antonio Martins e Daniel Merli.

É possível assistir ao excelente documentário "A revolução não será televisionada", filmado e dirigido pelos irlandeses
Kim Bartley e Donnacha O’Briain, obra-prima que mostra os bastidores do golpe e a recondução de Chavez ao Palácio de Miraflores, no portal da TV Senado (requer o Real Player instalado).